sábado, 15 de janeiro de 2011

A HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO BRASILEIRA NOS FILMES

A HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO BRASILEIRA NOS FILMES

A HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO BRASILEIRA NOS FILMES

João Luís de Almeida Machado[1]

Resumo: Os filmes constituem um ótimo recurso para a aprendizagem. Há vários estudos já realizados e em desenvolvimento que atestam a primazia das imagens e dos recursos multimídia como ferramentas efetivas para a aprendizagem entre as novas gerações. O aperfeiçoamento e a maturação do cinema brasileiro fazem surgir, nesse sentido, um grande aliado para a compreensão e análise da história de nosso país, sempre em paralelo com as pesquisas e a bibliografia já estabelecida. A proposta desse artigo é possibilitar aos estudiosos dos hábitos alimentares e da gastronomia uma melhor compreensão de seus ramos de atuação a partir do exame minucioso de importantes obras da cinematografia brasileira, a saber: Como era gostoso o meu francês (1971), Desmundo (2003), Carlota Joaquina (1994) e O quatrilho (1995).

Palavras-chave: Alimentação, Cinema, Filmes Brasileiros, História do Brasil, Gastronomia.

Abstract: Movies are, indeed, an outstanding resource for learning. There are many studies already made and also being developed that prove that images and multimedia resources are effective tools for learning especially among the newest generations. The improvement and maturity of the Brazilian cinema are creating a great allied to the comprehension and analysis of the history of Brazil, always in parallel with researches and bibliography already established. The proposal of this article is to allow studious of the alimentation and gastronomy a better understanding of their object of research from the examination of important productions of the Brazilian cinematography, such as: Como era gostoso o meu francês (1971), Desmundo (2003), Carlota Joaquina (1994) and O quatrilho (1995).

Keywords: Alimentation, Cinema, Brazilian Movies, History of Brazil, Gastronomy.

Os filmes constituem ferramenta para o trabalho pedagógico desenvolvido por professores das mais diversas áreas do conhecimento e têm sido referendados como tal, nos últimos anos, em função de estudos, publicações de caráter científico, teses, dissertações, artigos divulgados em algumas das mais prestigiadas revistas universitárias e até mesmo por sua adoção em exames vestibulares.
Alguns especialistas chegam a afirmar que as novas gerações são eminentemente ligadas à aprendizagem com fundamentação visual. Não mais aquela em que apenas as imagens estáticas conseguem compor um pano de fundo explicativo para determinados conceitos e idéias. Muito menos dentro do plano meramente ilustrativo e de composição visual apresentado em livros didáticos utilizados em qualquer nível de aprendizagem.
As imagens têm que, literalmente, nos falar muitas coisas. Devem permitir a expansão do conhecimento pela possibilidade da observação, da reflexão, da análise, da comparação e da anotação de dados, características, funções e condições averiguadas nesse exame. Seu estudo demanda tempo, perspicácia, atenção aos detalhes e muita dedicação.
Não se trata simplesmente de assistir filmes ou de apreciar quadros, esculturas, fotografias, mapas, gráficos e infográficos. Devemos entendê-los como uma forma de comunicação de mensagens que atinge o consciente e o inconsciente de milhões de pessoas ao redor do mundo. E que, tendo em vista seu poder de penetração e alcance, merecem um olhar mais aguçado e comprometido.
O ato de assistir filmes deve ser entendido como uma atividade acadêmica de fundamentação tanto quanto ler livros ou fazer pesquisa de campo. São incomparáveis enquanto parâmetros que subsidiam a prática da pesquisa, até mesmo pela tradição e campos de atuação serem diversos e, muitas vezes, complementares. Não competem entre si, pelo contrário, se auxiliam e tornam as possibilidades de análise ainda mais amplas e sofisticadas.
Temos já, no Brasil, uma escola cinematográfica respeitada e considerada mundialmente. Seja pela retomada do sucesso de nossas produções atingida recentemente numa feliz combinação de talento de nossos jovens cineastas e do público brasileiro, sequioso de histórias que falem de sua realidade; ou ainda no exame atual de obras produzidas em décadas passadas que criaram o nosso histórico no setor e que foram galgando credibilidade em âmbito internacional a ponto de forjar o surgimento de uma produção caracteristicamente brasileira.
Já faz bastante tempo que Mário Peixoto filmou seu clássico Limite, no entanto, as fronteiras que demarcam os territórios conquistados pelos filmes brasileiros não parecem fadadas a respeitar demarcações e tem, conseqüentemente, desrespeitado os limites. A conquista de respeito internacional tem seu princípio ainda nos anos 1960 quando a Palma de Ouro do prestigiado Festival Internacional de Cinema de Cannes foi concedida ao Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte; ou ainda quando percebemos o respeito, impacto e a admiração causada por obras como Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe, do cultuado Glauber Rocha.
Nosso Cinema Novo em franca evolução sofreu as limitações da censura governista ao longo dos anos 1970 e 1980. Parecia prestes a perecer em virtude da crise da Embrafilme no início dos anos 1990. Mas teve fôlego suficiente para se revigorar e entrar numa espiral de crescimento na segunda metade da década de 1990, como parecia nos dizer o diretor Cacá Diegues com o título de um de seus longas-metragens produzidos então, Dias Melhores Virão.
Uma nova geração de cineastas capitaneada por Walter Salles Jr., Carla Camuratti e Fernando Meirelles, apoiada por nomes consagrados anteriormente como Sérgio Resende, Héctor Babenco ou mesmo Cacá Diegues recolocou o cinema nacional nos trilhos do sucesso. A repercussão internacional se tornou ainda maior a partir da indicação de filmes como O Quatrilho (de Fábio Barreto), O que é isso, companheiro? (de Bruno Barreto), Central do Brasil (de Walter Salles Jr.) e de Cidade de Deus (de Fábio Meirelles) a diversos prêmios de respeito no cenário cinematográfico mundial. Além das premiações e indicações obtidas por esses e outros filmes brasileiros recentemente produzidos, também a crítica internacional especializada tem se rendido à criatividade das realizações cinematográficas tupiniquins.
O reconhecimento levou os brasileiros de volta aos cinemas dispostos a aplaudir, rir, chorar, se assustar ou simplesmente se descontrair com os filmes nacionais. Ao se perceber como personagem das tramas, se identificando com as localidades, com os traços étnicos definidores dos personagens, com as situações assemelhadas a muitas com as quais convive, com as roupas e mesmo com os alimentos degustados em cena, o brasileiro declarou-se novamente apaixonado pelo cinema brasileiro.
Isso não quer dizer que todos os nossos filmes estejam fazendo sucesso e tendo reconhecimento de público e de crítica. Há mazelas e problemas a serem solucionados. A produção nacional ainda é reduzida quando comparada a de outros países, mesmo em relação aos vizinhos latino-americanos que como nós tem vivido crises e dificuldades que emperram os financiamentos para a produção, casos da Argentina e do México.
Entretanto os recortes que tem sido criados a partir das câmeras, roteiros, fotografias e edições realizadas pelos especialistas brasileiros têm nos trazido uma idéia muito clara da realidade de nosso país ao longo de toda a sua história. O resgate da história da alimentação a partir dos filmes é apenas mais uma entre variadas possibilidades de estudo que podem ser efetivadas com o exame da produção nacional passada e recente.
Filmes como Como era gostoso o meu francês (de Nelson Pereira dos Santos), O Quatrilho (de Fábio Barreto), Carlota Joaquina (de Carla Camuratti) ou ainda o recente Desmundo (de Alain Fresnot) servirão como base para um estudo introdutório sobre o tema da alimentação brasileira nas telas do cinema. O estudo será feito de forma comparativa, procurando descrever as condições visualizadas nas projeções e comparar os dados obtidos com informações colhidas nas fontes mais reconhecidas ou recentes da bibliografia nacional a respeito do tema, como por exemplo, os trabalhos de Luís da Câmara Cascudo (História da Alimentação no Brasil) e de Gilberto Freyre (Açúcar).

Como era gostoso o meu francês (1971)
Os Índios retratados por Nelson Pereira dos Santos

Como era gostoso o meu francês, filme dirigido e produzido por Nelson Pereira dos Santos, realizado em plena vigência da ditadura militar brasileira, durante o período de governo do general Médici, é uma produção cultural verdadeiramente atípica para o momento histórico em que foi produzido. Época de profunda repressão política e de censura rigorosa, os primeiros anos da década de 1970 não se mostravam propícios para produções cinematográficas que tivessem como interesse à promoção de debates ou troca de idéias (ou para qualquer outro tipo de realização cultural que pudesse questionar, se mostrar contundente, provocar a platéia ou abalar as estruturas vigentes).
Nelson Pereira conseguiu com essa sua produção sobre o período colonial brasileiro, relativa ao século XVI, quando do estabelecimento dos europeus em terras americanas, gerar descontentamento nas autoridades que governavam nosso país não pelas idéias que carregava em seu ventre, mas pela nudez dos índios e mesmo de alguns personagens aculturados em terras brasileiras.
Os censores do estado brasileiro não perceberam as guerras entre tupiniquins e tupinambás ou mesmo os confrontos entre europeus e aborígenes como ameaças a manutenção da ditadura, a sua integridade enquanto regime político dominante. Ao censurar o filme, seu foco pareceu muito mais moral, motivado por princípios que relacionam a cultura nacional ao catolicismo conservador que propriamente a qualquer conteúdo ideológico que pudesse ser percebido ao longo da projeção do filme.
Talvez por entenderem que a história de um aventureiro francês, prisioneiro dos índios tupinambás, que escapa (durante algum tempo) da morte em virtude de seus conhecimentos de artilharia, com boa parte dos diálogos em Tupi, estava destinada a ser vista por público muito restrito e, ao mesmo tempo, não passível de interpretações políticas, Como era gostoso o meu francês foi liberado e apresentado nacionalmente sem maior repercussão no que se refere ao conflito político-ideológico reinante naqueles anos de chumbo.
Entretanto, em termos culturais, a obra de Nelson Pereira nos permitiu a discussão de hábitos, a percepção do conflito de interesses, a visualização do choque dos costumes e também do cotidiano daquele Brasil indígena de 1594. Há uma preocupação em reproduzir o que a história nos legou em termos de informação, nesse aspecto percebe-se toda uma preocupação com a cenografia, as locações, os figurinos e mesmo com os itens apresentados como parte da alimentação dos primeiros habitantes do país. A utilização do Tupi como língua e os prêmios conquistados pelo filme no festival de Brasília (roteiro, diálogos e cenografia) atestam a preocupação e o esmero por parte da equipe técnica que realizou o filme sob a batuta de Nelson Pereira.
É justamente nesse ponto que reside nosso estudo e preocupação:- a averiguação dos dados apresentados como históricos nas telas dos cinemas no início dos anos 1970 e disponibilizados atualmente graças ao recurso dos videocassetes e dos DVD players podem ser considerados como condizentes com aquilo que está documentado em estudos acadêmicos acerca dos hábitos alimentares do Brasil daquele longínquo século XVI? Podemos utilizar esse e outros filmes como recursos para a compreensão da história da gastronomia no Brasil? Caso isso possa acontecer, de que formas esse trabalho poderia ser desenvolvido em sala de aula?
Para começar esse trabalho relatamos a seguir alguns momentos da história trabalhada no filme de Nelson Pereira dos Santos dando a necessária ênfase aos detalhes relativos a alimentação no período destacados nas imagens e diálogos.
No início do filme, tendo por base uma suposta carta enviada por Villegaignon, líder das esquadras francesas que tentaram criar uma colônia na região do Rio de Janeiro, é feita uma descrição de alguns hábitos e situações vividas por esses europeus em terras brasileiras. Há, nessa introdução, vários momentos em que os colonos aparecem comendo milho, frutas e mandioca (identificada pelos europeus, a princípio como Inhame), juntamente com os nativos, o que nos faz supor que essa fosse a base da alimentação dos indígenas; nesse mesmo trecho, quando os franceses se isolam do contato com os nativos e encontram-se num abrigo provisório, onde erguerão uma fortificação, vemos esses mesmos europeus consumindo queijos, pães e vinhos.
As situações apresentadas no filme de Nelson Pereira dos Santos conferem parcialmente com algumas observações feitas por Luís da Câmara Cascudo em seu célebre livro História da Alimentação no Brasil, como podemos perceber, por exemplo, nos seguintes trechos:

Primeira informação sobre o cardápio local: “Dizem que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer aquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que na terra há e eles comem”. (CASCUDO, 2004).

Na chamada e coeva Relação do piloto anônimo menciona-se ‘uma raiz chamada inhame, que é o pão de que ali usam’. Adiante cita o milho, inhame o algodão, gabando a abundância de árvores e águas. (CASCUDO, 2004).

Há um destaque todo especial nos primeiros relatos a respeito de nosso país quanto ao consumo de mandioca, como se pode perceber no trecho anterior, em parte constante da carta enviada por Pero Vaz de Caminha ao reino português, destacada na obra de Câmara Cascudo. Além desse documento, há também referências a esse produto específico da alimentação indígena brasileira na Relação do Piloto Anônimo, importante registro dos primeiros tempos dos portugueses em sua colônia americana.
Logo depois dessas imagens que principiam o filme Como era gostoso o meu francês são apresentados os créditos iniciais onde percebemos a utilização de algumas imagens de época, ilustrações produzidas por viajantes que exploraram o território nacional entre os séculos XV e XVIII, existindo uma clara intenção por parte do cineasta de nos colocar em contato com a imagem do indígena produzida a partir do enfoque do colonizador.
É possível, por exemplo, perceber que os portugueses e demais colonos que por aqui estiveram tentam apresentar esses aborígines como selvagens. Há algumas imagens no filme de Nelson Pereira dos Santos que claramente induzem a percepção dos índios como praticantes do canibalismo. Isso nos leva a pensar nesses primeiros habitantes do Brasil como fundamentalmente antropófagos. O que pode fazer com que se desloque o foco de outras fontes alimentares basilares na alimentação indígena, como a própria mandioca.
É necessário salientar que a importância conferida ao canibalismo não é condizente com as descrições de Câmara Cascudo e de outros cronistas, como Hans Staden, que inclusive estava condenado a se tornar vítima dessa prática antropofágica dos indígenas.
Apesar disso, Staden nos coloca a par de algumas particularidades da alimentação e dos hábitos cotidianos do grupo ao qual esteve submetido como cativo. Isso corrobora as colocações de viajantes e estudiosos que perceberam o canibalismo como uma circunstância de guerra e sobrevivência, não como uma base alimentar perene, cotidiana.
O título do filme alude a idéia de canibalismo entre os índios, discutida entre os silvícolas a partir do momento em que capturam um dos franceses que havia se amotinado e que, por esse motivo, havia sido preso por seus compatriotas e sentenciado a uma rigorosa penalidade, sendo jogado ao mar com correntes e pesos para se afogar. O francês consegue escapar da morte por afogamento e se torna prisioneiro dos índios que são aliados dos portugueses (tupiniquins). Posteriormente, em virtude de conflitos entre diferentes tribos, ele volta a pertencer aos índios aliados dos franceses, sem que isso o faça livrar-se da nova pena a qual havia sido condenado, ou seja, a de se tornar alimento para tal tribo.
Quanto aos condenados ao canibalismo, de acordo com o filme Como era gostoso o meu francês, eram bem tratados pelos indígenas, sendo concedidos a eles um período de vida aproximado de oito a nove meses durante os quais viviam integrados a comunidade nativa, tendo direito a ter mulheres, viver em relativa liberdade, acumular recursos naturais para trocar com os europeus que por lá passassem, banhar-se em rios ou no mar, alimentar-se fartamente com os frutos da terra,...
Outra idéia trabalhada subliminarmente ao longo do filme destaca a prodigalidade e riqueza da natureza e, como conseqüência disso, sua capacidade de suster os indígenas sem que os mesmos tivessem que trabalhar de forma regular para obter seus alimentos.
Ficam evidenciadas como formas de trabalho regular por parte dos indígenas apenas aquelas em que ocorre a obtenção de recursos fornecidos pela natureza, como a caça, a coleta ou a pesca. O plantio de qualquer tipo de cultura alimentar é percebido como complementar a essas outras atividades.
Percebemos isso com grande clareza no trecho da carta de Pero Vaz de Caminha, destacado por Câmara Cascudo em sua História da Alimentação no Brasil apresentado a seguir:

A economia doméstica é registrada: “Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito e dessa semente e fruitos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isso andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com tanto trigo e legumes que comemos”. (CASCUDO, 2004)

No filme há menções ao comércio entre os tupinambás e os franceses envolvendo madeira e pimentas típicas da terra. Quando do encontro entre o líder francês e os índios são oferecidas muitas frutas (sem que seja possível definir quais são, exceto as bananas), além disso, negociam-se trocas e há novas referências à madeira e pimenta. Quanto à pimenta, recorremos novamente às notas de Câmara Cascudo, respaldadas pelos depoimentos de Hans Staden e Gabriel Soares de Sousa:

Essencial condimento indígena era a pimenta (Capsicum) que Hans Staden conta de duas espécies, amarela e vermelha, e Gabriel Soares Sousa umas seis, que Martius identificou todas do gênero capsicum, solanáceas. Comiam-nas verdes ou maduras “com o pescado e com os legumes... e o gentio come-a inteira misturada com farinha” (CASCUDO, 2004)

Quanto às bananas, vale lembrar que eram realmente populares desde os primeiros tempos no Brasil, apesar de consideradas aclimatadas e não nativas, sendo provenientes do continente africano para as Américas. Eram utilizadas nos mais variados tipos de receitas, sendo comidas assadas, cozidas, cruas, com queijo, açúcar ou canela,...
Mesmo não sendo típicas de nossas terras, as bananas adquiriram status e se tornaram parte constante e permanente do imaginário referencial relativo ao Brasil. Com certeza isso explica porque são recorrentes em diversos filmes, mesmo aqueles que mostram os indígenas do século XVI. Não sendo nativas, vale registrar que nossas terras contribuíram com diversas frutas para o cardápio mundial, como o caju, a goiaba e o maracujá.
Em uma seqüência do filme que nos mostra a conversa entre o prisioneiro francês e sua mulher indígena são feitas referências a Mair, o caraíba que os ensinou a se barbear, produzir milho e mandioca, beber cauim, fazer o fogo, construir casas, fazer armas,...
Esses caraíbas teriam introduzido entre os indígenas as técnicas de preparo da terra e cultivo, que seriam então trabalho destinado às mulheres e crianças. Além do cultivo da terra aprendido com os europeus, as indígenas tinham ainda que coletar vegetais que pudessem ser consumidos pelos membros de suas comunidades. Aos homens da tribo caberiam a caça, a pesca e a guerra.
Percebemos então como as influências advindas dos “caraíbas” ou homens brancos promovem alterações na cultura indígena, estabelecendo certos comportamentos e práticas ou apenas referendando-os. Exemplos disso seriam a divisão de funções e a introdução de técnicas de trabalho agrícola (além da própria noção de trabalho disciplinado e regular, que não foi bem aceita pelos nativos; eles preferiam fugir ou mesmo se suicidar a ter que se submeter a tal tipo de regime de trabalho).
No filme percebemos que a relação entre os negros da terra (os bugres ou índios) e os europeus concede elementos culturais influenciadores de alterações de comportamento tanto dos colonizadores para os nativos quanto no sentido inverso. Ao mesmo tempo em que procuravam se apropriar de conhecimentos específicos da cultura de seus prisioneiros europeus, os indígenas legavam aos mesmos hábitos e práticas típicos de sua cultura, como é possível observar pela adoção de padrões de vestuário, utilização de armas, ornamentos, corte de cabelos, alimentos consumidos, dormir em esteiras ou redes, perder a vergonha de se relacionar intimamente com suas parceiras indígenas na frente dos demais membros da tribo, e outros hábitos incorporados e descritos tanto no filme de Nelson Pereira quanto em relatos de viajantes que estiveram no Brasil dos séculos XVI, XVII e XVIII.

 


















Desmundo (2003)
Os primeiros colonizadores apresentados pelo cineasta Alain Fresnot

Os primeiros portugueses que se estabeleceram no Brasil, além de uma origem duvidosa, provenientes muito mais do limbo do que do luxo das cortes, viveram uma experiência das mais desgraçadas entre as muitas que são contadas a respeito de nosso país. Tinham que “mostrar os dentes” o tempo todo, demostrando força e se apegando as leis de sobrevivência na selva (literalmente) para poderem conquistar terras, domar o gentio (os índios, também conhecidos como negros da terra) e estabelecer produção.
Caçar índios, diga-se de passagem, mais que necessidade se tornou negócio lucrativo nesses primeiros tempos. Supria as necessidades de um país onde inexistiam braços para manter o esforço das lavouras que brotavam em vários cantos. Cumpria-se, teoricamente, também uma função “civilizatória” ao se colocar os “negros da terra” em contato com a religião católica.
As índias, além de tudo, eram capturadas para suprir as necessidades sexuais dos europeus que haviam se instalado nessas terras sem a companhia de suas esposas ou de qualquer outra mulher branca. Alain Fresnot nos convida a examinar a história das mulheres que eram “importadas” da Europa para se casar com os “fidalgos” locais.
A personagem central, Oribela (numa notável performance de Simone Spoladore) é uma dessas órfãs, recolhidas pelas ruas, pelos abrigos dos sem-teto e sem-família ou nos conventos. Vem ao Brasil para se casar com Francisco (Osmar Prado, assustador e muito convincente), um desses degredados que se dignificou com as terras e escravos que adquiriu por aqui.
O embate entre Oribela, religiosa fervorosa educada num convento, e o violento e grosseiro Francisco, foco central da narrativa, fica ainda mais complexo com a entrada em cena do mercador e cristão-novo (judeu convertido ao catolicismo, por força da necessidade) Ximeno Dias (Caco Ciocler), por quem Oribela demonstra simpatia e se apaixona.
No Brasil Colônia de 1570, mostrado no filme “Desmundo” podemos ver que nos espaços novos que se formavam, homens familiarizados com hábitos de privacidade improvisavam, à sua moda, novas formas de vivê-los. Vivências que, no limite, inviabilizavam a intimidade ou levavam ao isolamento que ameaçava a própria vida. Tratava-se de um mundo de desbravadores. Homens de grande coragem e enorme valor, que abandonaram sua terra de origem e viajaram para terras habitadas por animais selvagens e bugres (índios) hostis.
Sua contribuição, de valor inestimável, permitiu que o Brasil e o restante das Américas se integrasse ao mundo civilizado e muito mais evoluído que existia na Europa da modernidade.
Não havia qualquer traço do Brasil que conhecemos hoje naqueles tempos. No século XVI o Brasil era uma terra praticamente virgem, usada em pequena escala por poucos índios que por aqui plantavam mandioca, caçavam, pescavam e viviam de forma idílica, como a reproduzir a idéia do paraíso perdido na terra, sem pudor e sem pecado. Quando os europeus por aqui chegaram, diferentemente do que pensamos, não vieram trazendo o melhor de sua civilização no convés de seus navios...
Vinham náufragos, traficantes e degredados. Homens rudes, tão selvagens quanto os mais temíveis dos verdadeiros brasileiros, os índios. Pessoas inescrupulosas, violentas e que vinham para a América em busca de oportunidades derradeiras de sobreviver, de resistir e, de preferência, de ganhar algum dinheiro.
“Desmundo”, do cineasta Alain Fresnot, nos coloca em sintonia com a realidade desse Brasil do século XVI, desconhecido de muitos. Um país literalmente “bronco”, um tanto quanto bárbaro. Tão viril e embrutecido que a produção de Fresnot, apesar de belíssima, muito bem filmada, com reprodução de época esmerada e atores de primeiríssima qualidade, não foi bem aceito pelo grande público.

Nos primeiros séculos da colonização, a organização familiar e a vida doméstica não poderiam deixar de ser influenciadas por alguns dos elementos que marcaram profundamente a formação da sociedade brasileira e o modo de vida dos seus habitantes. A distância da Metrópole, a falta de mulheres brancas, a presença da escravidão negra e indígena, a constante expansão de território, assim como a precariedade de recursos e de toda sorte de produtos com os quais estavam acostumados os colonos no seu dia-a-dia, são apenas alguns dos componentes que levaram a transformações de práticas e costumes solidamente constituídos no reino, tanto no que se refere à constituição das famílias como aos padrões de moradia, alimentação e hábitos domésticos. (SOUZA, 1997).

A alimentação da época consistia em caça e roça que quase sempre eram praticadas pelos índios escravizados pelos colonos. Podemos constatar o fato nas primeiras cenas do filme quando as órfãs chegam ao Brasil sendo encaminhadas para um lugarejo onde as índias estão cozinhando animais, notando-se também a presença de verduras.
A presença dos jesuítas no retratada no filme, que condiz com a história do Brasil daquele período, também influiu na alimentação dos colonos.

... Mesmo nas lonjuras do sertão, procuravam preservar os hábitos que prezavam em condições normais; para temperar o peixe, lastimavam a falta do azeite e do vinagre, e buscavam novos atrativos para o paladar: ‘se alguma coisa tivemos em abundância foi laranjas da China excelentes, assim na grandeza como no gosto, limões, batatas, carás, fruta da terra, que sem estar tudo isto cultivado (...) é sumamente bom’. (SOUZA, 1997)

Aspecto contraditório existente no filme Desmundo quanto aos hábitos alimentares daquele período é perceptível em cena na qual Francisco de Albuquerque e sua mãe Dona Branca jantam, logo após a chegada dele com sua nova esposa, Dona Oribela. Na cena Dona Branca usa uma colher e depois sorve o conteúdo de seu prato indicando que estaria consumindo uma sopa ou algo líquido. Francisco, por sua vez, usa as mãos comendo uma comida pastosa e farinhenta que deveria ser feita com farinha de mandioca, muito consumida na época e produzida em moinhos por índios ou escravos negros.
A contradição está não somente na diferença de comidas, pois não era costume fazer-se mais de um prato, mas também no uso da colher, pois colheres e garfos eram objetos raros, usados em grandes ocasiões. Pelas condições de vida mostradas no engenho de Francisco, não seria muito comum o uso de colheres.
Podemos também observar que os remédios da época passavam pelo manuseio de ervas e folhas frutíferas, como quando Oribela foi forçada a andar a pé machucando seus pés e sendo tratada por uma índia com emplastros e folhas de bananeira.
A presença de um judeu convertido a Cristão Novo, corporificada no personagem Ximeno Dias (Caco Ciocler), evidencia a influência dessa comunidade nos hábitos e costumes do Brasil Colonial. Não é possível, a partir do filme “Desmundo”, demonstrar evidências dos legados da comunidade judaica em nosso país. Devido as proibições e perseguições sofridas (especialmente a partir da ação da Igreja Católica e de seus tribunais da Inquisição) por esse pequeno contingente judaico que esteve no Brasil, os registros de documentos existentes a respeito do tema são esparsos e ainda não foram devidamente estudados.  



Carlota Joaquina – A Princesa do Brasil (1994)

Um retrato irônico do Período Joanino no Brasil, por Carla Camurati


Carla Camurati é saudada como a responsável pelo sucesso abre-alas da retomada do cinema nacional depois dos problemas da Era Collor, em que a produção cinematográfica nacional quase pereceu de vez. Jovem cineasta de talento, atriz promissora que se revelou competente em sua carreira, Carla resolveu filmar a história do Brasil, em busca de nossas raízes e acabou escolhendo o período em que a família real portuguesa, acuada pela invasão das tropas napoleônicas, cruzou o Atlântico e por aqui se estabeleceu. História de difícil digestão quando estamos numa sala de aula, o filme de Camurati acabou se transformando num grande sucesso. Reduzidos os fatos a abertura dos portos às nações amigas, aos tratados de comércio e navegação ou a chegada da Missão Francesa, a apresentação do chamado Período Joanino pode ser realmente entediante. Aliás, a utilização de recursos como o filme “Carlota Joaquina” permite a dinamização da aula, a geração de maior interesse entre os alunos e os leva a uma melhor compreensão desses acontecimentos e personagens.
Como em qualquer produção cinematográfica, várias liberdades foram tomadas pela diretora e pelos roteiristas. Não há nada que possa comprometer o aproveitamento do recurso ou o desenvolvimento da temática em aulas. Basta ter discernimento para apontar as idéias ou princípios que mais lhe interessam para a composição e, estar por dentro do assunto que será possível fazer bom uso desse material.
A grande crítica que se faz ao filme "Carlota Joaquina" reside no aspecto caricato dos membros da família real portuguesa, especialmente no tocante a Dom João e a própria Carlota. Dom João é comilão, preguiçoso, influenciável e um governante indeciso (às vezes, irresponsável). Carlota é rancorosa, nervosa e tem um apetite sexual insaciável, tendo traído Dom João várias vezes, o que não parece lhe causar nenhum tipo de arrependimento ou remorso.
Pode-se perceber nessa caracterização uma tentativa de apresentar elementos que nos permitam visualizar em Dom João um retrato da nobreza européia. Em “Carlota”, podemos entrar em contato com os hábitos dessa nobreza no que se refere aos casamentos e relacionamentos amorosos onde não há vínculos estreitos já que esses matrimônios nada mais eram que acordos que uniam famílias, posses e poder.
Outro aspecto interessante a se destacar reside na influência dos ingleses quanto à vinda da família real para o Brasil. Isso normalmente é ressaltado no desenvolvimento das aulas e o personagem de Lorde Strandford serve como referência importante a esse acontecimento e pode fazer com que se desenvolva uma discussão em que se debatam os interesses que moveram a Inglaterra a auxiliar a fuga de Dom João e companhia para o Brasil.
A chegada a terras brasileiras e a adaptação de lusos ao novo ambiente e de brasileiros aos hábitos dos visitantes ilustres também merece destaque. A necessidade de ceder suas casas aos portugueses, os apertos relativos ao mercado e a pequena oferta de alimentos e demais gêneros (que causavam aumento de preços) foram alguns dos problemas enfrentados pelos brasileiros. O calor, os novos alimentos, a convivência muito estreita com negros e mestiços e os insetos foram dificuldades encontradas pelos portugueses no Brasil.
Há seqüências que, a princípio, deveriam ser encaradas como trágicas, mas que são hilárias, como no caso da retirada da família real portuguesa da metrópole (que D. Maria, a louca, entendeu como sendo uma fuga) ou a primeira noite do casal João e Carlota, ainda jovens, que quase terminou em tragédia.
Preste atenção aos hábitos despojados da corte no Brasil que contrastam enormemente com a morbidez dos mesmos personagens quando viviam em Portugal. Infelizmente, Carla Camurati não contou com um orçamento mais generoso, o que restringiu as possibilidades de uma grande reprodução de época, no entanto, no geral as locações e os figurinos não comprometem a compreensão desse período, pelo contrário, tentam ser fiéis ao que conhecemos de então.
Se por um lado faltaram dinheiro e recursos materiais, por outro, o elenco colocado à disposição para as filmagens foi de primeira. Especial destaque para Marieta Severo como Carlota e para Marco Nanini como Dom João, impagáveis e muito seguros em seus papéis. Bem conduzidos, realizaram uma pequena pérola do cinema nacional.
Já no que se refere especificamente a história da alimentação, o filme de Carla Camurati nos coloca em diferentes ambientes na Europa e também no Brasil para que possamos perceber os hábitos, práticas e alimentos regularmente consumidos nesses contextos tão diversos.
Como a história é centrada na figura de Carlota Joaquina, o primeiro olhar relativo à alimentação ocorre no banquete de despedida da infanta de 10 anos que havia sido prometida a um dos herdeiros do trono português. Há muita festa regada a vinhos, música, belos e ricos trajes (tanto para os homens quanto para as mulheres) e ainda podem ser percebidos pratos que tem como ingredientes principais as aves e as frutas. Entre as frutas podem-se destacar as uvas que, inclusive, aparecem na viagem que a menina Carlota faz, juntamente com sua criada Francisca, rumo a Portugal para encontrar seu futuro marido, D. João.
As referências a Portugal não são, por sua vez, muito elogiosas quanto ao espírito das reuniões sociais. Critica-se com veemência a tristeza dos encontros promovidos pela família real lusitana que não é nada festiva quando comparada com a corte espanhola. Não há música, artistas e grandes celebrações, os portugueses parecem muito mais interessados em se deliciar com as iguarias que são oferecidas em suas mesas.
Entre os pratos oferecidos pelos portugueses aos seus convivas estavam as aves, frutas variadas (como maçãs, peras, laranjas e uvas), sardinhas, caldos, sopas, ovos, carne de porco e os pães. Todos esses alimentos eram sempre acompanhados do bom vinho português e de água para contrabalançar.
Também é possível perceber a existência e consequentemente o consumo de frutas secas como nozes e passas entre os membros da família real portuguesa em virtude de uma seqüência na qual Dom João choraminga a loucura de sua mãe, D. Maria I, enquanto segura uma prataria que contém esses alimentos.
A vinda dos portugueses ao Brasil em virtude da invasão de seu país por tropas de Napoleão Bonaparte e também da influência e do interesse da Inglaterra modificam um pouco os hábitos de consumo de D. João e de toda a corte que o acompanhou a nossas terras. Se na Europa abundam as frutas secas, as maçãs, as peras, as laranjas e as uvas, em terras brasileiras o que está disponível são as frutas tropicais.
Sabendo disso, a produção do filme se esmera em nos mostrar D. João, retratado ao longo de toda a película como um grande comilão, interessado em abacaxis, goiabas, cajus, mangas e bananas. Já não estão em cena as frutas típicas do clima temperado e frio do continente europeu, em seu lugar surgem os alimentos da nova terra ou que para cá foram importados ainda no início do processo de colonização pelos portugueses.
Outro aspecto importante e interessante destacado em “Carlota Joaquina” no que tange a alimentação nos primeiros anos do século XIX no Brasil é a apresentação das grandes feiras que eram montadas nas ruas do Rio de Janeiro. Nesses mercados abertos era possível encontrar além das mencionadas frutas tropicais muitos outros alimentos como:- cebolas, alho, galinhas, porcos, ovos, feijão, melões, romãs,...
Como o filme concentra o seu olhar sobre a vida da família real portuguesa desde a sua saída de Portugal, explorando principalmente a sua estadia em terras brasileiras e terminando com o retorno de D. João VI e Carlota a sede do reino que haviam abandonado em virtude da invasão napoleônica, pouco ficamos sabendo a respeito da alimentação das famílias brasileiras de diferentes níveis que aqui viviam naquela época. A única exceção acaba sendo uma seqüência em que uma das cortesãs que procurava agradar Carlota Joaquina e com isso obter benefícios e maior status perante a comunidade na qual vivia está a conversar diante de uma mesa onde podemos perceber a presença de frutas tropicais, pães e chá.
O que podemos pressupor é que a alimentação do período em terras brasileiras procurava, independentemente da qualificação sócio-econômica das famílias, se pautar naquilo que a terra lhes oferecia, ou seja, dentro de um receituário tipicamente tropical. Percebem-se também as dificuldades que existiam naquela época para o pleno escoamento de produtos europeus no mercado brasileiro, pelo menos de acordo com o que nos é mostrado no filme.
Não há armazéns bem estruturados que demonstrem que esse comércio de importados existisse. Isso não condiz com a visão histórica do Rio de Janeiro reformulado a partir da vinda dos dignitários nobres lusitanos que para cá vieram e que viveram importantes transformações a partir das ações políticas, econômicas e culturais promovidas por D. João.

 








O Quatrilho (1995)

O Brasil dos Imigrantes Italianos nas lentes de Fábio Barreto


A história de “O Quatrilho”, filme de Fábio Barreto, concentra-se na imigração italiana para o Brasil na virada do século XIX para o XX, especificamente em relação à região sul, onde grandes contingentes de europeus (especialmente de italianos e alemães) acabaram se instalando e deixando suas contribuições e herdeiros até os dias atuais.
Trajetórias se cruzam, quatro pessoas se encontram, inicialmente deslocadas por estarem em casamentos nos quais não se realizaram pessoalmente. Nos bastidores, toda uma preocupação em mostrar um pouco do cotidiano desses recém-chegados a nossas terras, apresentando com bons resultados a forma como se vestiam, sua alimentação, as relações familiares, o mobiliário das casas, o trabalho e um pouco do lazer dessas comunidades ítalo-brasileiras em formação.
Logo no início do filme, na seqüência dos créditos, são disponibilizadas fotografias antigas onde podemos ver festas, igrejas, retratos do cotidiano, o trabalho, as casas, o comércio, as roupas, os meios de transporte, as ferramentas e alguns outros detalhes da vida da colônia italiana estabelecida no sul do Brasil.
Os italianos se estabeleceram como colonos em estados como o Paraná, Santa Catarina e, principalmente, o Rio Grande do Sul, onde se tornaram pequenos proprietários rurais, partindo posteriormente para empreendimentos no comércio e pequena indústria.
Entre seus divertimentos destaca-se, no filme, um jogo de cartas chamado quatrilho, comum entre os imigrantes italianos e que se caracteriza por uma troca de parceiros durante a partida. O jogo concentra em si, na simplicidade de suas regras, a dinâmica do filme e, particularmente, das relações amorosas envolvendo os casais formados por Glória Pires e Bruno Campos de um lado e Patrícia Pillar e Alexandre Pasternost do outro.
O Quatrilho retrata relações tumultuadas entre casais num Brasil do início do século marcado por seus hábitos e costumes extremamente conservadores, ainda mais dentro de uma colônia de italianos católicos, não prima pela regra da época, pelo contrário, atenta para situações muito mais próprias do período de vida em que estamos inseridos hoje. No entanto, as regras mais rígidas tem sido quebradas nos momentos mais impróprios, sendo assim é até possível que situação semelhante tenha sido vivenciada por alguém, por que não?
O ano é 1910, estamos em Santa Corona, no Rio Grande do Sul. O primeiro ato do filme é o casamento de Teresa (Patrícia Pillar) e Ângelo (Alexandre Pasternost). A união matrimonial nos leva para uma festa, onde animados por músicas típicas italianas, ao ar livre e cercados de convidados e mesa farta os noivos são o centro da atenção.
Nas mesas podemos ver bolos, pães, vinhos e referências no diálogo ao consumo de polenta e salame. Entre os animais da fazenda existem mulas, vacas, cavalos.
Os colonos viviam de forma simples, rústica. Suas casas tinham móveis de madeira e poucos cômodos, a iluminação era feita com lamparinas, à cozinha tinha fogão à lenha e mesa com grandes bancos.  A produção de uvas e a transformação dessa matéria-prima em vinhos, de forma tradicional aparece em seqüências breves.
Nas cozinhas podiam ser vistos tonéis de vinho e as famílias se alimentavam sempre reunidas. O trabalho na cozinha era sempre responsabilidade das mulheres que ofereciam esfregolá (uma espécie de bolo) e batata doce, além de vinho, enquanto os homens se reuniam para jogar quatrilho. Além de cozinhar as mulheres tinham o hábito de costurar e bordar. No trabalho nas cozinhas era traje regular das mulheres o avental e o lenço na cabeça.
Os homens lidavam com o trabalho no campo, onde produziam uvas e cereais (milho e trigo), além de alguns tipos de frutas em pomares. Criavam galinhas, porcos, patos, vacas. Além disso, eram responsáveis pela construção das casas, poços, cercas, móveis. Certos colonos, ao se instalarem construíam moinhos que lhes serviam como garantia para a moagem dos cereais e a época de quebra de safra, quando tendo menor produção, com o aluguel dos serviços do moinho conseguiam equilibrar o orçamento.
A farinha produzida pelos colonos era vendida aos comerciantes das cidades estabelecidas nas proximidades e depois revendida pelo comércio local ou mesmo para outras localidades da província e do país. O escoamento da produção, feito a princípio em carroças, através de estradas rústicas, é gradualmente substituído com a introdução das estradas de ferro.
No mercado local eram vendidos vários tipos de “frios” como copas, salames, presuntos, além disso, podiam ser vistos pacotes com farinhas, cebolas e alho. Além do vinho, nos armazéns vendia-se cachaça. Era também regular o consumo de queijos, broas e pães doces. O consumo de café também se torna parte do cotidiano, aparecendo nas mesas ao lado dos pães, bolos, polentas, salames e queijos. Como sobremesa aparecem as frutas (como as próprias uvas) ou ainda os doces de frutas em conserva.
Na época da colheita as mulheres ajudavam seus maridos na lida, fosse na colheita de milho ou de trigo. O filme nos mostra a forma rústica de produção da farinha nos moinhos. Os negócios envolvendo a produção realizada nas fazendas eram feitos de forma exclusiva pelos homens, apesar disso as mulheres opinavam no âmbito doméstico dando algumas sugestões.
Ao se referir aos fazendeiros brasileiros os colonos italianos dizem que eles criam gado e ovelhas, mas que não plantam. Referem-se a práticas próprias da região Sul do Brasil, reconhecida historicamente como a principal fornecedora de charque ao restante do país desde o século XVII. A afirmação da agricultura se deve principalmente a atuação de imigrantes como os próprios italianos, alemães, portugueses, espanhóis e demais europeus que formaram colônias no Paraná, em Santa Catarina e também nos pampas gaúchos.



REFERÊNCIAS

Bibliográficas

CASCUDO, Luís da Câmara. História da Alimentação no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Global, 2004.

FREYRE, Gilberto. Açúcar: Uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.

SOUZA, Laura Mello (org). História da Vida Privada no Brasil 3. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.

Fílmicas

CARLOTA JOAQUINA, PRINCESA DO BRASIL. Direção de Carla Camurati. São Paulo: Europa Carat Home Vídeo, 1995. DVD. 100 min.

COMO ERA GOSTOSO O MEU FRANCÊS. Direção de Nelson Pereira dos Santos. Rio de Janeiro: Condor Filmes, 1989. VHS, Ntsc, son., color. 83 min.

DESMUNDO. Direção de Alain Fresnot. São Paulo: Columbia Pictures, 2003. DVD. 100 min.

O QUATRILHO. Direção de Fábio Barreto. São Paulo: Europa/Carat Home Vídeo, 1995. DVD. 120 min.






[1] Professor e pesquisador do Centro Universitário Senac – Campus Campos do Jordão/SP; Doutorando em Educação:Currículo pela PUC-SP; Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP); Editor do portal Planeta Educação (www.planetaeducacao.com.br).J

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