domingo, 23 de janeiro de 2011

Marx, o Jovem

LITERATURA

Marx, o Jovem

Um "romance" de formação

RESUMO
Escrita por Karl Marx (1818-83) antes de completar 20 anos, a novela humorística "Escorpião e Félix", que tem sua primeira tradução integral do alemão publicada nesta edição, revela uma face desconhecida e absurda de sua obra. Críticos avaliam a importância do texto e especulam sobre suas influências e seu significado.




BERNARDO CARVALHO
ILUSTRAÇÃO PAULO MONTEIRO


QUANDO KARL MARX MORREU em Londres, em 1883, pouco antes de completar 65 anos, trazia no bolso um retrato do pai. O corpo foi enterrado com a foto. A situação é tão mais comovente por o retrato ter sido encontrado no bolso do mesmo revolucionário antiburguês que, anos antes, escrevera ao amigo Friedrich Engels, coautor do "Manifesto Comunista": "Abençoado aquele que não tem família" -e que entrara na vida adulta tentando se livrar do jugo paterno.
Em 1837, aos 19 anos, no final do primeiro ano da faculdade de direito em Berlim, Marx enviou ao pai, Heinrich, em Trier, como presente de aniversário, um caderno de versos contendo a soma de suas veleidades líricas: poemas (ao que parece, péssimos, entre canções, ditirambos e baladas do jovem apaixonado pela futura mulher, Jenny von Westphalen), uma tradução de Ovídio, o início de uma peça em rimas e trechos de um romance fragmentário, "Escorpião e Félix", escrito à maneira alegórica e irônica do que poderia ser associado apressadamente a certo romantismo de época.

PARÓDIA 
Para Sam Stark, editor da "Harper's Magazine" e autor de um ensaio sobre o caderno do jovem Marx, publicado em fevereiro de 2008 na revista "The Believer", o aspecto romântico e fragmentário do "romance" tem menos de influência do que de paródia: "Até onde ele está levando a sério essa visão Até onde está parodiando os mecanismos românticos e se apropriando deles para seus próprios fins políticos". O caderno de versos resume, mas também põe fim, às ambições literárias do jovem Marx. E prenuncia uma crise psicológica que o levará, ironicamente, à leitura de Hegel -ao qual ele tanto resistira, nem que fosse para aplacar as apreensões do pai, sempre tão zeloso em não deixar o filho à mercê da "idealização abstrata" (Karl chega a caçoar da opacidade das ideias de Hegel num poema incluído no caderno e a lhe atribuir a alcunha de anão numa passagem de "Escorpião e Félix"). A carta ao pai que ele escreve em novembro do mesmo ano, fazendo um balanço dos seus fracassos e frustrações (reconhece, consternado, a falta de talento para a literatura) e do estado de seus interesses intelectuais e acadêmicos, permite ver em retrospecto naquele caderno de versos enviado meses antes mais uma confissão -o anúncio de um rompimento e do fim de um ciclo- do que propriamente a intenção reconfortante de um presente de aniversário. O fracasso literário foi, de certo modo, o atestado de independência do jovem Marx. Seis meses depois, na morte do pai, Karl disse que tinha mais o que fazer em Berlim e não compareceu ao enterro.

CONVERSÃO 
O advogado Hein-rich Marx, descendente de uma família de rabinos numa cidade católica como Trier, convertera-se ao cristianismo luterano antes do nascimento do filho, mais por pragmatismo do que por convicção religiosa, uma vez que de nada serviram seus apelos ao governo prussiano pelo fim da discriminação contra os judeus, penalizados e mantidos como cidadãos de segunda classe, por mais prósperos que fossem seus negócios. Sua conversão ao patriotismo germânico, a despeito dos ideais de liberdade que conhecera anos antes, durante a ocupação francesa da Renânia, corresponde ao mesmo senso prático. Quando o filho vai estudar direito, primeiro em Bonn e depois em Berlim, Heinrich acompanha de longe e com atenção cada passo do rapaz brilhante e promissor, procurando guiá-lo pelo bom caminho. Não se pode dizer que por trás das ambições literárias do jovem Marx não houvesse, portanto, também a mão paterna, apostando no futuro profissional do filho e no prestígio da literatura como garantia de acesso aos círculos mais influentes. Karl decidira (não sem reservas) seguir carreira na administração pública. Havia em média dois alunos formados para cada vaga disponível no serviço público na Prússia. Era preciso chamar a atenção para si, e por um momento ele deve ter acreditado que pudesse fazê-lo por meio da literatura.

CONTADOR DE HISTÓRIAS 
Leitor de Homero, Dante e Shakespeare (que ele acabará recitando para os filhos, assim como os contos de E.T.A. Hoffmann, durante o desterro final em Londres, para onde se muda em 1849 e onde será enterrado como apátrida 34 anos depois), além de admirador de compatriotas como Goethe, Schiller e Heine, Karl Marx teria sido, desde cedo, a julgar por uma anedota, um exímio contador de histórias. Segundo a filha Eleanor, relatando o que ouvira das tias, o pequeno Karl fora um ditador que subjugava as irmãs, obrigando-as a lhe servir de montaria e a comer bolos de lama. E as irmãs se submetiam a todas as suas fantasias, só para depois poder ouvir, como prêmio, as histórias que ele lhes contava. É difícil imaginá- las, entretanto, fazendo o mesmo por uma leitura de "Escorpião e Félix". O britânico Francis Wheen, autor da biografia de Marx publicada em 2001 pela Record, define o "romance" enviado ao pai no caderno de versos de 1837 como "uma torrente disparatada de humor esdrúxulo e chacota, obviamente redigida sob a influência do 'Tristram Shandy', de [Laurence] Sterne [1713-1768]". O mesmo "Tristram Shandy" cuja influência entre nós garantiria algumas décadas depois a entrada da literatura brasileira na modernidade, com "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881). "A inspiração literária mais forte sobre o fragmento é certamente a de Sterne, que também influenciou muito Heine", diz Marcelo Backes, tradutor de Marx e de Heine. Embora os dois só tenham se encontrado em 1843, em Paris, é notável a ascendência do poeta sobre o jovem revolucionário desde os tempos do famigerado caderno de versos.

GÊNIO DESMISTIFICADOR 
Para Dolf Oehler, professor na universidade de Bonn e autor de "Terrenos Vulcânicos" (Cosac Naify), a razão é outra. "O tom sterniano-heiniano de Marx carece de liberdade, o estilo paródico é laborioso. A tendência é violentamente anti-idealista, anticlássica e mesmo antirromântica", diz ele. "Mas vemos também que, a despeito do talento satírico e paródico, Marx não leva jeito para a ficção. Seus breves capítulos carecem, por assim dizer, de tensão ficcional (que faz o charme de Sterne ou de Machado de Assis). Ele teoriza em vez de narrar. Já se anuncia nesse texto o gênio desmistificador e um certo método paródico e polêmico de atacar sem trégua o pensamento dominante". Para Sam Stark, o estilo informe de "Escorpião e Félix" atraía o jovem Marx "por lhe permitir ao mesmo tempo brincar com certas crenças 'radicais' (ele cutuca o catolicismo, a Alemanha, a aristocracia, talvez o moralismo sexual etc.) e disfarçar um pouco o que realmente pensava. Provavelmente, porque ainda não sabia ao certo o que pensar sobre assuntos como política ou religião (que ele vai trabalhar a partir de Hegel e Feuerbach), para não falar de sexo!". Parte do movimento romântico já era vista pela geração de Marx como conservadora e ultrapassada. "Ele deve muito mais às ironias racionalistas de Lessing e Heine, que admirava abertamente. Eles eram os heróis da 'esquerda' do seu tempo", diz Stark. "A conexão essencial com a obra posterior é que ele já está se debatendo com o problema do sujeito e da sua própria relação com o mundo do conhecimento. Eu diria que ele está vivendo uma crise de ceticismo, está tentando encontrar um lugar de onde partir. E esse é um problema que não desaparece, nem mesmo em 'O Capital'."

FANTASMAGORIA 
Marcus Mazzari, professor de teoria literária na USP e autor de uma recente tradução comentada do "Manifesto Comunista" (Hedra), vai além: "Com todo o seu rigor científico, Marx revela em seus trabalhos extraordinários recursos literários, não só nas inúmeras citações, como também pela dimensão imagética e metafórica de seu estilo". A célebre passagem sobre o "caráter fetichista da mercadoria", no primeiro capítulo de "O Capital", é um exemplo: "A forma da madeira [...] é modificada quando se faz dela uma mesa. Nem por isso a mesa deixa de ser madeira [...]. Tão logo, porém, a mesa surja como mercadoria, ela se metamorfoseia numa coisa natural-sobrenatural. Não apenas está fincada no chão com suas pernas, mas também se coloca de cabeça para baixo perante todas as demais mercadorias e de sua cabeça de madeira vai tirando toda sorte de caprichos, coisa mais maravilhosa do que se ela começasse espontaneamente a dançar". "Será que uma intuição dessa 'fantasmagoria' não pode ser vislumbrada em 'Escorpião e Félix'", pergunta-se Mazzari.

ESBOÇO DE JUVENTUDE 
Afinal, do que trata esse esboço de romance de juventude, recheado de alusões que vão da Bíblia a E.T.A. Hoffmann, passando por Ovídio, Shakespeare e Goethe De uma cozinheira, de deus, do dinheiro, de filósofos, de filologia, dos clássicos, da distinção entre esquerda e direita, do céu, da Lua e das mulheres, da jurisprudência, da primogenitura, de um alfaiate, de seu filho Escorpião, de seu amigo Félix e de seu cão constipado. Tudo num excerto incompleto de 24 capítulos cuja lógica poderia remeter tão somente à dialética do absurdo, para manter algum tipo de vínculo com o vocabulário que terminamos por associar ao marxismo, se não fosse também o que vai permitir ao jovem Marx, "como por um passe de mágica [...], avistar o reino da verdadeira poesia como um palácio distante e imaginário" e intuir a ruptura, o caminho do qual nenhum zelo paterno será capaz de demovê-lo.


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