domingo, 17 de julho de 2011

A questão da universalidade do Complexo de Édipo, Josefina Pimenta Lobato

Foi um antropólogo, Bronislaw Malinowski, quem pôs em questão, pela primeira vez, a idéia, proposta por Freud, de que o complexo de Édipo corresponderia a um certo tipo de experiência humana que se manifestaria sempre da mesma forma, em todas as épocas e lugares. Em seu livro, Sexo e repressão na sociedade selvagem, publicado em 1927, o drama edipiano, desprovido de seu caráter universal, é tratado como um evento intimamente relacionado à instituição familiar patriarcal e à moral sexual repressiva, vigentes no momento histórico em que Freud o concebeu: o da Europa dos finais do século XIX e início do século XX.
A fim de pôr em evidência a interligação entre o drama edipiano e o contexto social em que Freud vivia, Malinowski toma como referência uma sociedade específica, a dos ilhéus de Trobriand, cuja vida familiar e sexual –, a primeira, fundamentada em um sistema de parentesco matrilinear, e a segunda, extremamente liberal – são reguladas por normas, crenças e valores bem diferentes dos existentes em sociedades em que a ideologia patriarcal e a moral sexual repressiva são dominantes.
No que se refere à vida familiar, uma das características diferenciais entre a sociedade matrilinear trobriandesa e a sociedade patriarcal européia provém do fato de o pai não ser reconhecido como o progenitor de seus filhos, mas apenas como o marido da mãe deles. Com efeito, de acordo com as crenças dos nativos de Trobriand:
As crianças são inseridas no útero materno como minúsculos espíritos, geralmente pela ação do espírito de uma parenta morta da mãe. O marido desta tem de proteger e cuidar das crianças, recebê-las em seus braços quando nascem, mas não são dele, no sentido de que ele tenha contribuído de alguma forma na sua procriação. O pai é assim um amigo amado, benevolente, mas não é reconhecido como parente dos filhos. O parentesco real, isto é a identidade da substância, o mesmo corpo, só existe através da mãe (MALINOWSKI. 1973, p.23).
Até os anos setenta, pelo menos, essa crença ainda persistia, embora de forma sub-reptícia, devido à constante pregação, por parte dos missionários e dos professores das escolas governamentais, de que a concepção é um fenômeno biológico que requer única e exclusivamente a colaboração de ambos os sexos, através do ato sexual (WEINER. 1989).
Uma outra diferença marcante entre as relações familiares dos trobriandeses e as vigentes nas sociedades patriarcais localiza-se na relevância dada ao tio materno (irmão da mãe) que, no papel de chefe masculino da família matrilinear, representa a autoridade real que se acha por trás das imposições e obrigações que cabem aos membros das gerações mais novas, seus sobrinhos, cumprirem. O menino, particularmente, é solicitado pelo tio, a partir dos seis anos, para realizar certos serviços na aldeia de seus parentes matrilineares, referentes ao cultivo da terra e ao transporte da colheita. Ao realizar esses trabalhos em conjunto com seus parentes matrilineares, o menino começa a sentir que é a aldeia do seu tio, e não a que ele reside com seu pai, que constitui sua própria aldeia. É através dessa convivência que ele aprende as tradições, mitos e lendas de seu clã. Ele aprende também que, no futuro, lhe caberá, assim como coube ao seu tio materno, ser o senhor de suas irmãs, sustentar a família dela e lhe legar seus bens, assim como seus conhecimentos relativos à magia, danças e cantos, aos filhos que ela tiver. Sua irmã, por sua vez, deverá tratá-lo com reverência, como faz sua mãe em relação ao seu próprio irmão. Nessas circunstâncias, o sentimento de veneração e o de ódio reprimido em relação ao pai, peculiares ao drama edipiano, dirigem-se ao tio materno que representa e encarna o princípio da disciplina e do poder executivo.
Para se ter uma idéia da diferença entre a relação pais e filhos em Trobriand, caracterizada por sentimentos amigáveis e de companheirismo, e a instaurada nas famílias burguesas da época de Freud, onde a importância dada ao pai, a áurea de poder e de prestígio que o cercava eram imensas, a maneira pela qual Dora Montefiore, que fez parte do movimento sufragista inglês, descreve a atitude que ela e seus irmãos tinham em relação ao pai, nos raros momentos em que lhes era permitido conviver com ele é exemplar:
Todas as noites vestíamos roupas especiais para descer à sala de visitas na hora das crianças, das seis às sete, quando meu querido pai chegava em casa”. Nos domingos, prossegue ela, havia “o prazer puramente pagão” de um passeio com papai (apud GAY. 1988, p.81).
O ódio reprimido em relação ao tio, camuflado na vida cotidiana dos ilhéus de Trobriand, desvela-se em certos mitos. Em um desses, que versa sobre os eventos que provocaram a perda, por parte dos homens, da magia que lhes permitia voar, o herói é morto pelo seu irmão mais moço, que o ataca juntamente com seu sobrinho. A inexistência em Trobriand de casos de parricídio, aliada à ocorrência de alguns casos de violentas brigas e de dois assassinatos entre membros da família matrilinear, revelam, igualmente, a ausência de antagonismos entre pais e filhos.
Um dos contrastes diferenciais, no que diz às normas e valores que regem a vida sexual em Trobriand, gira em torna da maneira pela qual a sexualidade infantil é tratada. Aceita como parte constitutiva do desenvolvimento da criança, a sexualidade infantil segue canais institucionalizados dentro dos quais ela pode se expressar livremente, sem nenhum tipo de controle ou censura. A partir do momento em que o menino ou a menina fazem quatro ou cinco anos, já há uma expectativa generalizada de que ela se interessará pelos prazeres genitais e que os exercerá, em forma de brincadeira, com as crianças do outro sexo. Esse deslocamento da sexualidade infantil objetos alternativos seria um dos fatores que fazem com “que todo o desejo infantil pela mãe se extinga gradualmente de maneira natural e espontânea” (MALINOWSKI. 1973, p.74).
Essa transferência tranqüila do apego sensual à mãe para outros interesses, tal como ocorre em Trobriand, contrasta com o quadro típico do complexo de Édipo freudiano, no qual as pulsões genitais do menino, despertas no quarto ano de vida, fixam-se “no objeto mais próximo que normalmente a presença e o interesse lhe oferecem, a saber, o progenitor do sexo oposto. Essas pulsões fornecem ao complexo sua base; a frustração delas forma seu nó” (LACAN. 1987, p.42). Por essa mesma época, a criança adquire uma certa intuição de que os pais estão usufruindo daquilo que lhe é interdito. Através desse duplo processo, o progenitor do mesmo sexo, o pai, “aparece ao mesmo tempo como o agente da interdição sexual e como o exemplo de sua transgressão” (LACAN. 1987, p.42).
Tal frustração sexual é acompanhada, por sua vez, de uma repressão educativa que impede qualquer outra manifestação das pulsões reprimidas. Os efeitos psíquicos dessa repressão educativa é ressaltado por Wilhelm Reich. A seu ver, o desejo incestuoso “não só provém do apego natural aos pais e aos irmãos e irmãs, mas – num grau tão elevado que é impossível de determinar – da privação completa das outras relações sexuais” (REICH. 1974, p.27).1
Há um relacionamento, na sociedade trobriandesa, todavia, sobre o qual a força repressiva da sociedade manifesta-se severamente. Esse relacionamento é o existente entre irmão e irmã. Sempre que uma criança esboça atitudes amistosas ou de afeto em relação ao irmão do sexo oposto, ela é tratada com rispidez e seriamente repreendida. Brincadeiras ou conversas que possam ter, mesmo que remotamente, algum tipo de alusão à sexualidade, são duramente reprimidas. Tais restrições, quanto a qualquer tipo de contato que possa ter uma conotação, por menor que seja, de intimidade ou de sexualidade, tende a fazer, como era de se esperar, com que a irmã, manifestamente evitada, seja secretamente desejada.
Esse desejo secreto revela-se na reação fortemente emotiva de indignação e de cólera à mera insinuação de que alguém poderia ter um sonho erótico com sua irmã, em contraposição à resposta calma e tranqüila de negação, quando se faz a mesma pergunta, tendo como referência a mãe. O mesmo se pode dizer quanto à reação emocional violenta ao insulto, no qual se diz à pessoa “vá ter relações com sua irmã” (kwoy inam), em contraposição à reação amena, quando a expressão utilizada é “vá ter relações com sua mãe” (kwoy lumuta), cujo sentido equipara-se ao “vá para o inferno”, entre nós. Um outro ponto que merece destaque é a existência de um mito relativo ao incesto entre irmãos, concomitantemente à ausência de mitos ou de contos que façam menção ao incesto entre mãe e filho, como ocorre na tragédia de Sófocles, Édipo Rei.
Por tudo isso, Malinowski acredita que, em uma fórmula concisa embora crua, pode-se dizer que:
No complexo de Édipo há o desejo reprimido de matar o pai e casar-se com a mãe, enquanto na sociedade matrilinear das Trobriand o desejo consiste em casar-se com a irmã e matar o tio materno” (MALINOWSKI. 1973, p.74).
Tais considerações relativas à dependência do complexo de Édipo de um certa forma de organização da vida familiar e sexual, típica das sociedades patriarcais, tiveram uma grande repercussão entre psicanalistas e antropólogos.
Um dos primeiros psicanalistas a levar em conta o material etnográfico trobriandês, na análise do complexo de Édipo, foi Ernst Jones, em seu artigo Mother-Right and the Sexual Ignorance of Savages. De acordo com sua interpretação, o tio materno seria apenas um bode expiatório sobre o qual recairia o ódio primitivo que sempre se dá em relação ao pai, uma vez que as tendências edipianas primordiais, que são fundamentais, jamais deixam de existir. Da mesma maneira, na sua interpretação, “a irmã proibida e inconscientemente amada é apenas uma substituta da mãe” (JONES, apud MALINOWSKI. 1973, p.125). Dessa maneira, Jones pôde, por um lado, acatar a idéia de que os fatores culturais influenciam a manifestação do complexo, e, por outro, manter a crença de que o drama edipiano é a realidade primeira. Diferentemente de Malinowski, para quem a aplicabilidade do complexo de Édipo “restringe-se à sociedade patriarcal ariana” (MALINOWSKI. 1973, p.147).
Um outro psicanalista que deu relevância ao material etnográfico trobriandês, em sua análise do complexo de Édipo freudiano, foi Jacques Lacan. Para ele, no entanto, o papel do tio materno não seria apenas o de servir de bode expiatório sobre o qual recairia o ódio primitivo que se manifestaria sempre em relação ao pai, como pensava Ernst Jones. Tendo relacionado os efeitos psíquicos do Édipo à constituição típica da família patriarcal, onde a imago do pai concentra a função de repressão e de sublimação, ele contrasta esses efeitos com os ocorridos entre as famílias matrilineares trobriandesas, nas quais as funções de repressão e de sublimação distribuem-se entre dois personagens distintos, o pai e o tio materno, mostrando que, no segundo caso, há um equilíbrio diferente do psiquismo, que se manifesta pela ausência de neuroses. Ele ressalta, contudo, que isso não nos autoriza a pensar que esse equilíbrio psíquico seja paradisíaco, “à harmonia que ele comporta se opõe, com efeito, a estereotipia que marca as criações da personalidade, da arte à moral” (LACAN. 1987, p.55).
Marie-Cecile e Edmond Ortigues, por sua vez, diferentemente dos autores anteriormente citados que discutem as formulações de Malinowski unicamente a partir dos dados por ele fornecidos e de seus próprios conhecimentos teóricos sobre o complexo de Édipo, utilizam, como embasamento de suas considerações, as experiência de ambos na prática psicanalítica em sociedades matrilineares, com pacientes das etnias woloflébou e serer, internados em um hospital de Dakar, no decorrer dos anos de 1962-66. Fundamentados nos conhecimentos assim adquiridos, eles criticam a afirmativa de Malinowski de que o desejo reprimido de se casar com a irmã e de matar o tio materno, freqüentemente detectado em sociedades matrilineares, seja uma prova de que o complexo de Édipo é relativo a um determinado contexto social. Para eles, esses sentimentos são “um assunto de adultos, muito menos recalcado no esquecimento do que os caprichos e os ciúmes da infância. O complexo de Édipo é o problema da sexualidade infantil e, em todas as sociedades, não é outra coisa do que isto” (ORTIGUES; ORTIGUES. 1989, p.282).
Nessa mesma linha, Geza Roheim, um antropólogo de formação psicanalista, critica as alegações feitas por Malinowski para afirmar que o complexo de Édipo, tal como Freud o concebeu, não existe em Trobriand. Conforme ele procura demonstrar, o fato de a criança viver os primeiros cinco anos de sua vida em um lar, no qual o pai é aquele que, segundo o próprio Malinowski, “encontra-se em uma relação íntima com a mãe e que é o chefe do lar” (apud ROHEIM. 1973, p.229), aliado ao fato de ele vir a conviver intimamente com o tio materno, somente após os seis anos de idade, torna inviável a pressuposição de que o complexo de Édipo não se desenvolveria entre os trobriandeses. A entrada em cena de um pai mais severo, representado pelo tio materno, serve apenas para deslocar parte da hostilidade do pai ao tio.
Georges Devereux, aliando sua experiência psicanalítica a de etnólogo, afirma, igualmente, que nenhum dado etnográfico pôde demonstrar, até hoje, que as proposições psicanalíticas não sejam indubitavelmente universais. No seu entender, a utilização de dados etnográficos para invalidar certos aspectos da teoria psicanalítica é tão ingênua quanto a que pretende alegar que a existência de aviões invalida a teoria da gravidade, “pois a ausência – em nível consciente e sob uma forma culturalmente estabelecida - de um fenômeno que no julgamento dos psicanalistas tem caráter universal exige unicamente a análise dos processos psicodinâmicos que determinam a repressão desse fator ou fenômeno” (DEVEREUX. 1972, p.69).
Houve uma outra corrente dentro da psicanálise, contudo, cujos autores, a exemplo de Karen Horney e Erich Fromm, levaram a influência dos fatores culturais muito além do que Malinowski pretendeu. Analogamente a alguns antropólogos norte-americanos, a exemplo de Ruth Benedict e Margaret Mead2, eles reduzem a origem do complexo de Édipo a conflitos ligados à imposição de uma autoridade ilimitada por parte dos pais e a estipulação de tabus sexuais repressivos.
Para Karen Horney, especificamente:
O complexo de Édipo tal como se revela no consultório psicanalítico não é gerado por fatores inscritos na natureza humana e no desenvolvimento da libido, mas por determinadas condições culturais: desarmonia do casal devido às relações conflitivas entre os sexos, poder autoritário ilimitado por parte dos pais; tabus em todo e qualquer meio de expressão sexual da criança; tendência para conservar o filho em estágio infantil e emocionalmente dependente dos pais.” Em vez de ser causa da neurose, o complexo é uma formação neurótica cuja causa está nos fatores culturais (HORNEY. 1972, p.58).
Para Erich Fromm, igualmente:
O complexo de Édipo deve ser interpretado não como o resultado da rivalidade sexual da criança com o pai do mesmo sexo, mas como a luta da criança com a autoridade irracional (que visa quebrar a vontade da criança e impeli-la à submissão) representada pelos pais” (FROMM. 1965, p. 201).
Vê-se assim que a proposta de Malinowski, a de que é preciso se levar em conta a variabilidade dos fatores culturais relativos à vida familiar e sexual na análise do complexo de Édipo, causou muitas polêmicas no contexto da reflexão psicanalítica. Acatada, negada ou levada a extremos, sua interpretação do complexo de Édipo, feita a partir do material etnográfico trobriandês, têm-se constituído em um desafio permanente aos psicanalistas e antropólogos que tratam dessa questão.

Notas
  1. Para ilustrar a veracidade dessa concepção, Reich compara a vida sexual nas sociedade patriarcais sexualmente repressivas com a existente na sociedade trobriandesa, descrita por Malinowski, onde não existe uma “moral sexual baseada na negação da sexualidade” (REICH. 1974, p.25).
  2. Ruth Benedict, por exemplo, que reduz o complexo de Édipo apenas a uma questão ligada à autoridade paterna, afirma que entre os zuñi, “todas as disposições militam contra a possibilidade de que a criança venha a sofrer do complexo de Édipo". Fazendo uma comparação dos zuñi com os trobriandeses, ela ressalta que os eles estariam em uma situação ainda melhor uma vez que "nem mesmo os tios exercem qualquer espécie de autoridade familiar” (BENEDICT. 1955, p.72). Margaret Mead, nessa mesma linha de argumentação, acredita que em uma comunidade familiar mais ampla, tal como a existente em Samoa, “na qual há vários adultos, homens e mulheres, parece proteger o menino contra o desenvolvimento das atitudes mutilantes que conhecemos como complexo de Édipo” (MEAD. 1974, p. 222).

Referências Bibliográficas
BENEDICT, Ruth. Padrões de cultura. Lisboa: Livros do Brasil. 1955.
DEVEREUX, Georges. Etnopsicoanálisis complementarista. Buenos Aires: Amorrortu. 1972.
FROMM, Erich. Origens individuais e sociais da neurose. In: Kluckhon, Clyde et al. (orgs.). Personalidade na natureza, na sociedade e na cultura. Belo Horizonte: Itatiaia. 1965.
GAY, Peter. A experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud: a educação dos sentidos. São Paulo: Companhia das Letras. 1988.
HORNEY, Karen. A personalidade neurótica de nosso tempo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1972.
LACAN, Jacques. Os complexos familiares na formação do indivíduo: ensaio de análise de uma função em psicologia. Rio de Janeiro: Zahar. 1987.
MALINOWSKI, Bronislaw. Sexo e repressão na sociedade selvagem. Petrópolis: Vozes. 1973.
________. Bronislaw. 1982. A vida sexual dos selvagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
MEAD, Margaret. Adolescencia y cultura en Samoa. Buenos Aires: Paidós. 1974.
ORTIGUES, Marie-Cecile ; ORTIGUES, Edmond. Édipo africano. São Paulo: Escuta. 1989.
REICH, Wilheim. A Irrupção da moral sexual repressiva. Porto: Escorpião. 1974.
ROHEIM, Geza. Psicoanálisis y antropologia: cultura personalidade e inconsciente. Buenos Aires. Sudamericana. 1973.
WEINER, Annette B. Women of value, men of renown: new perspectives in trobriand exchange. Austin: University of Texas Press. 1989.
http://www.psicologia.pt/artigos/imprimir.php?codigo=A0182

Nenhum comentário:

Postar um comentário